Para além da vida das abelhas e das flores 4: o caminho da guerra

Salvo alguns erros, que me são inerentes, não me parece que o meu amigo Jrd, que tem feito o favor de me ler esta “lenga-lenga”, esteja com a toda a razão.
Claro que, sendo o maior contribuinte liquido - sempre atrasado e não em numero de soldados - e o exército mais poderoso, o estado americano é uma variável independente e incontornável na equação da ONU.
Como disse um ex-secretário geral da ONU “as nossas instituições globais podem muito pouco”, e só quando o empenho americano aparece, é que "o céu” passa a ser o limite. Isto resulta da actual relação de forças no sistema "uni-mulitlateral".
Mas o mesmo Koffi Annan, na sequência da intervenção da Coligação no Iraque, também criticou duramente a administração americana: “esta lógica representa um desafio fundamental aos princípios sobre os quais, ainda que imperfeitamente, se apoiava a paz e a estabilidade mundiais nos últimos 58 anos” (Discurso de abertura da 58ª Assembleia-geral em 2003).
E tinha também uma boa parte da razão. Mas teremos de admitir que o desafio provém, tanto desta lógica, como das novas ameaças pós-11/9 (terrorismo e ADM) e da incapacidade das ONU para lhes responder. Uma lógica (impotência multilateral) conduz inexoravelmente à outra (unilateralismo).
Não podendo obter uma segunda resolução do Conselho de Segurança (impedida pela Rússia e pela França) que expressamente autorizasse o uso da força contra o Iraque, os EUA avançaram unilateralmente em função dos seus interesses.
Mas também para impor o respeito pelas resoluções do CS da ONU, sucessivamente violadas por Saddam. Este desrespeitou e contribuiu para desacreditar a ONU durante anos consecutivos, violando 17 resoluções do seu Conselho de Segurança desde a Guerra do Golfo. Logo no início, Bush deixou claro que, ou o CS impunha o respeito das suas resoluções ou seriam os EUA a fazê-lo. O paradoxo cruel é que para fazer respeitar a legalidade internacional, os EUA actuaram à margem dessa estrita legalidade.
Mas insisto que, se a França e a Rússia – não fossem os contratos avultados com Saddam - se tivessem concertado claramente com os americanos na condenação do Conselho de Segurança, teria havido um impacto diferente no jogo de poker de Saddam (talvez se evitasse a guerra); não o fazendo criaram o efeito contrário, ou seja, desacreditaram a determinação americana (vista como bluff de um “tigre de papel”).
Pareceu-me desde o inicio um erro o ataque ao Iraque sem a legitimação do Conselho de Segurança. Teria sido preferível, mesmo na óptica americana, invocar apenas a segurança nacional. Ao recorrerem à ONU, os americanos ficaram reféns da autorização do Conselho de Segurança.
Foi pior.
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Para além da vida das abelhas e das flores 3: as nações desunidas

Este pormenor fundamental, ajuda a explicar muitas das ambiguidades e contradições do próprio funcionamento da ONU, e a sua relação com a legitimidade internacional. Como se viu a propósito da crise do Iraque.
Na Crise do Iraque as preocupações com a segurança tinham níveis bastante diferenciados entre americanos, europeus, russos e chineses, e os interesses relativos ao petróleo eram nitidamente conflituantes. Franceses e russos estavam mais envolvidos no investimento e exploração dos poços iraquianos, mas os americanos nunca foram indiferentes a esses recursos. Em consequência, as “nações desunidas”, acordaram na identificação da ameaça, mas discordaram no modo de responder.
A evolução da crise levou os Estados Unidos a optarem pelo unilateralismo – apesar de nunca desistirem de envolver uma coligação alargada de países, e creio vir daí a atitude pouco sensata, de tentar convencer o CS, à última hora, com “provas” das ADM iraquianas (facto dispensável, que posteriormente eclipsou tudo o resto nesta história).
Mas não se pense que a determinação unilateral é exclusivo da administração Bush.
Já em
No mesmo sentido, em 1995, o ex-secretário geral da ONU, Boutros Boutros-Gali, na aplaudida “Agenda para a Paz” referiu a diversidade de modalidades para a defesa da Paz, incluindo o “desarmamento compulsivo” (e era do Iraque que fundamentalmente se tratava) “As Nações Unidas não têm nem reivindicam o monopólio de nenhum desses instrumentos. Todos eles podem ser utilizados (e foram-no de facto, na maioria dos casos) por organizações regionais, grupos de estados constituídos para o efeito ou Estados a título individual”.
O que os Estados Unidos fizeram em relação ao Iraque foi precisamente “constituir um grupo de estados para o efeito”, a Coligação.
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Para além da vida das abelhas e das flores 2: a estratégia do "império"

Após o choque do 11/9, as estratégias da América passaram para uma dupla abordagem:
- Uma é diplomática multilateral, quer em articulação com outras potências (particularmente Rússia, China e Europa), quer com as instituições de regulação internacional (particularmente ONU e AIEA); é preferencial porque tem maior legitimidade.
- Outra, em simultâneo, assumidamente unilateral, de confronto, impondo sanções, mantendo uma politica de exibição de força militar (que no caso do Iraque foi até ao extremo); não é preferida mas é claramente afirmada como uma opção.
Estas duas atitudes, têm como finalidade, alterar o comportamento dos estados, que tentem armar-se com programas nucleares e tecnologias míssil. Este comportamento ambivalente consta de documentos estratégicos públicos, e é denominado pela administração americana com estratégia Uni-Multilateral. É nesta perspectiva que designaram estados como “párias”, e se inventou um “Eixo do Mal”, com o Irão, a Coreia do Norte e o Iraque.
Mas isto, nunca foi exclusivo americano. Mesmo sem anúncio estratégico formal, a maior parte dos países age tanto unilateralmente, como multilateralmente. Pela primeira, em defesa dos seus interesses vitais (segurança nacional) na sua zona de influencia; pela segunda no prosseguimento de causas globais e de segurança internacional. Quanto maior for a área de influência estratégica de uma potência e maiores forem as suas capacidades, maior é a tendência para agir unilateralmente e maior o número de países e interesses afectados.
Convém pois recordar, os principais entre os inúmeros casos de uso da força, sem autorização do Conselho de Segurança, e que não podem ser colocados numa concepção razoável de legitima defesa - a única opção aceite pelo capítulo VII da Carta das Nações Unidas:
1948 – Acção da URSS na Checoslováquia
1950 – Invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte
1954 – Acção dos EUA na Guatemala
1956 – Invasão do Egipto por forças de Israel, França e Reino Unido
1956 – Invasão da Hungria pela URSS
1960 – Acção do Vietname do Norte contra o Vietname do Sul
1961 – Invasão da Baia dos Porcos em Cuba, apoiada tacitamente pelos EUA
1961 – Invasão de Goa portuguesa pela Índia
1965 – Invasão da Republica Dominicana pelos EUA
1968 – Invasão da Checoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia
1973 – Acção árabe na “guerra dos seis dias” contra Israel
1975-Invasão de Timor pela Indonésia
1975 - Invasão de Angola pela África do Sul
1979 – Invasão do Cambodja pelo Vietname
1979 – Invasão soviética do Afeganistão
1979 – Invasão do Uganda pela Tanzânia
1982 – Invasão das Falklands britânicas pela Argentina
1983-Invasão de Granada pelos USA
1989 – Invasão americana do Panamá
1990 – Invasão do Koweit pelo Iraque
1999 – Intervenção da NATO contra a Sérvia, por causa do Kosovo
Na realidade, todas as grandes potências já usaram da força em violação da Carta das Nações Unidas.
(de Luís L. Tomé, Novo recorte geopolítico mundial, UAL 2004)
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