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La force des choses
15.6.08
 
Nevoeiro


Ninguém conhece que alma tem, nem o que é mal nem o que é bem.
Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.

Parece que a velha sina portuguesa também se transmite à Europa.
Os factos estão aí; o Tratado de Lisboa, glória da presidência portuguesa, tendo de ser ratificado pelos 27 membros da união, foi recusado em referendo democrático, por uma confortável maioria num deles, a Irlanda, precisamente o modelo exemplar dos benefícios europeus.
Dizer que 1% dos cidadãos europeus não podem impor-se à vontade de 490 milhões, como já foi dito, é puro cinismo, uma vez que em mais nenhum estado membro a ratificação é feita por consulta ao eleitorado. Nem ninguém se espantava, se consultados, outros viessem igualmente a recusar o penoso documento.
Ameaçar a Irlanda com a exclusão e outras diabolizações é absoluta hipocrisia, uma vez que em democracia todos os resultados são aceites; ainda por cima com o precedente de rejeição da pseudo-constituição pela França e Holanda. Se dessa vez parou tudo, porque é que se propõe agora, passar por cima de uma vontade democrática universalmente reconhecida?

Provavelmente, as consequências imediatas do “não” irlandês, resumem-se ao adiamento do processo de adesão da Croácia - a Macedónia e a Turquia já se encontravam entravadas – e da entrada em vigor do Tratado – seria a 1 de Janeiro. As correntes anti-europeístas fortaleceram-se e a dinâmica europeia que Lisboa parecia ter ressuscitado esvaiu-se.
Mas as ratificações nos restantes oito estados da união, deverão prosseguir na lógica de isolar a Irlanda; numa cada vez mais evidente redução jurídica e política, acrescente-se.
No entretanto, os criativos de Bruxelas, hão-de desmultiplicar-se em soluções para a recorrente crise institucional.
A primeira que lhe passará pela cabeça, pode ser a repetição do referendo, à semelhança de 2001, quando a mesma Irlanda recusou por o Tratado de Nice, para vir a aprová-lo no ano seguinte (esta lógica aberrante leva a pensar na repetição anual, até dizerem sim… então pára-se).
A segunda poderá ser o ajuste, a afinação em função do freguês, como foi feito perante a recusa em 1992 do tratado de Maastricht pela Dinamarca. Aprovado no ano seguinte com a sua isenção do euro e da politica de defesa comum.
Uma terceira hipótese, mais imperial, é aquilo que já está previsto no próprio Tratado de Lisboa, permitindo aplicá-lo aos que seguirem em frente, e deixando a Irlanda (e quem mais quiser) dentro dos compromissos actuais, mas sem poderem participar nas decisões tomadas ao abrigo de Lisboa. Cria-se uma estrutura autónoma dentro da união, a que se dá a designação sui generis de Cooperação reforçada.
Existem precedentes na união, algo semelhantes, como a convenção de Schengen, para a livre circulação de pessoas, que foi iniciada em 1985 por 5 estados membros e hoje conta já com 22, ou como os 11 estados que aderiram à União Económica e Monetária (zona euro) em 1999 que hoje são 15 e em breve mais. Em bom português, é o princípio do “amigo não empata amigo”.

Mas isto leva à Europa a duas, três, ou mais velocidades. Contrariamente ao propalado por muitos, o Tratado de Lisboa seria a melhor forma de balizar os directórios. Se chatearem muito (e estão a fazê-lo), as potências principais da união irão impor dois pesos e duas medidas com a correspondente marginalização dos pequenos estados. Não se podem dar ao luxo, na instável cena internacional actual, de perder o peso político induzido pela união. A França, a Alemanha, o Reino Unido, a Itália, a Espanha e a Polónia, não vão parar por exemplo, com a instituição da Segurança e Defesa comum, por mais obstáculos que lhes entravem o caminho. É, para esses estados, uma questão de poder.

O que não lhes vem à cabeça, a estas elites iluminadas da Europa, é que, mais tarde ou mais cedo, pagam o preço de uma política arrogante, distante e incompreensível aos olhos dos cidadãos europeus. Ou se aceita que é nas pessoas que reside a soberania, sejam elas pretas, brancas ou ás pintas, ou não se aceita e está tudo dito. À medida que, por medo, os que eleitos, se vão esquecendo de consultar os eleitores, se vão fechando em salas para as grandes decisões políticas - e por mais que inventem co-decisões com parlamentos, insistindo em mascarar a democracia - também irão perdendo cada vez mais a credibilidade (e legitimidade) perante aqueles a quem precisam de vender as ideias. Por melhores que sejam, essas ideias.

O que não lhes vem nunca à cabeça, a esses iluminados que sabem tudo para o nosso próprio bem, é que chega a hora de sujeitar tudo ao juízo dos tais 490 milhões. Em Portugal, nunca se referendou a Europa, nada. Sei que, também os eleitores, não ligam peva ao que mexe com a vida deles e dos seus filhos. Não votam, vão para a praia, e se votam, dizem não sem saber a quê…mas culpam sempre o que estupidamente (só pode ser isso) elegeram.
O que havia a fazer agora, se houvesse homens honestos e com coragem, era assim… anulavam-se as ratificações já feitas ao Tratado de Lisboa (nunca pensei estar tão de acordo com o Miguel Portas).
Depois, durante o tempo que fosse preciso, um João Perry, uma Rosa Lobato Faria, eu sei lá... ia lendo aquilo pela TV à hora do jantar, "prime time", em todos os 27 estados da "união". A um artigo por dia, creio que 365 chegam. Não tenho a certeza, por causa da porrada de protocolos anexos, mas se aquilo encaixa em semestres universitários, há-de haver maneira... Ah! e antes de cada filme, nos cinemas... o "artiguito da semana" para aperitivo... além de manter o tratado on-line, onde há que tempos, cada um já o pode ir lá ler.
No fim, combina-se um referendo em todos os 27 no mesmo dia; quem quiser adere e submete-se, quem quiser sai. Deixa-se em aberto a possibilidade de adesão posterior aos que saem... e pronto!

Vai criar problemas e dores, pois vai. Contudo, faço notar que toda a transferência de soberania que já foi feita para a União carece de legitimidade democrática (há matérias, como as de Maastricht, que não legitimavam um parlamento a fazê-lo). Faço notar também, por outro lado, que um país como a Noruega, sem estar na União Europeia, participa nos comités e com ela conjuga a sua politica; não está, mas está... sub-repticiamente lá está. Claro, fica sempre a ver, não participa nas decisões. Mas não será ainda o fim do mundo, há muito pior nesta vida, veja-se o Zimbabwe... e, por obséquio, que se acabe com esta hipocrisia mútua de políticos manipuladores, e de eleitores irresponsáveis.
Que tal deixarmo-nos de tretas, sermos honestos?

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Comments:
Muito bom.

Sou um pouco céptico relativamente ao Tratado, que aliás não entendo em toda a sua dimensão, provavelmente com a maioria esmagadora da população, e como não tolero arrogâncias nem aceito imposições de burocratas, fiquei impávido perante a negativa dos Irlandeses.
Se houvesse referendo em Portugal, com o actual quadro de referências, também votaria não, se a situação se modificasse o meu sentido de voto poderia mudar.
Boa semana
Um abraço
 
Ontem no Público, um tipo com cujo feitio embirro um pouco, mas que vou simultaneamente admirando, o Rui Tavares, falou na proposta de Miguel Portas: Os governos deveriam parar com as ratificações e dar ao próximo Parlamento Europeu (a eleger em 2009, creio) poderes constituintes. Daí sairia uma constituição europeia, que seria depois enviada para emendas, aos parlamentos nacionais, mais tarde finalizada pelo Conselho Europeu – onde, como bem refere, estão todos os interesses nacionais representados através dos ministros, pelo que se assemelha a uma câmara alta, a um senado europeu – e por fim submetido a ratificação europeia no mesmo dia, por referendo ou por voto parlamentar, conforme a escolha de cada país. No mesmo dia.

Sim, acho que esta seria a forma realmente honesta e desejável.
Mas irrealista, temo, os governos europeus, em especial as potências maiores nunca sujeitarão os seus interesses próprios (então de pois do trabalhão de negócios já arrumados!) a um bando de gentes directamente eleitas, sabe-se lá como, que para mais, quase nem liga às importantes eminências da Europa. È perigoso… sabe-se lá para onde poderiamos derivar… e depois, a União Europeia não se pode dar a esses luxos éticos, como "ser honesto", tem é que ser “original”... um Objecto Politico Não Identificado (OPNI)

;)
 
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