Nevoeiro
Ninguém conhece que alma tem, nem o que é mal nem o que é bem.
Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.
Parece que a velha sina portuguesa também se transmite à Europa.
Os factos estão aí; o Tratado de Lisboa, glória da presidência portuguesa, tendo de ser ratificado pelos 27 membros da união, foi recusado em referendo democrático, por uma confortável maioria num deles, a Irlanda, precisamente o modelo exemplar dos benefícios europeus.
Dizer que 1% dos cidadãos europeus não podem impor-se à vontade de 490 milhões, como já foi dito, é puro cinismo, uma vez que em mais nenhum estado membro a ratificação é feita por consulta ao eleitorado. Nem ninguém se espantava, se consultados, outros viessem igualmente a recusar o penoso documento.
Ameaçar a Irlanda com a exclusão e outras diabolizações é absoluta hipocrisia, uma vez que em democracia todos os resultados são aceites; ainda por cima com o precedente de rejeição da pseudo-constituição pela França e Holanda. Se dessa vez parou tudo, porque é que se propõe agora, passar por cima de uma vontade democrática universalmente reconhecida?
Provavelmente, as consequências imediatas do “não” irlandês, resumem-se ao adiamento do processo de adesão da Croácia - a Macedónia e a Turquia já se encontravam entravadas – e da entrada em vigor do Tratado – seria a 1 de Janeiro. As correntes anti-europeístas fortaleceram-se e a dinâmica europeia que Lisboa parecia ter ressuscitado esvaiu-se.
Mas as ratificações nos restantes oito estados da união, deverão prosseguir na lógica de isolar a Irlanda; numa cada vez mais evidente redução jurídica e política, acrescente-se.
No entretanto, os criativos de Bruxelas, hão-de desmultiplicar-se em soluções para a recorrente crise institucional.
A primeira que lhe passará pela cabeça, pode ser a repetição do referendo, à semelhança de 2001, quando a mesma Irlanda recusou por o Tratado de Nice, para vir a aprová-lo no ano seguinte (esta lógica aberrante leva a pensar na repetição anual, até dizerem sim… então pára-se).
A segunda poderá ser o ajuste, a afinação em função do freguês, como foi feito perante a recusa em 1992 do tratado de Maastricht pela Dinamarca. Aprovado no ano seguinte com a sua isenção do euro e da politica de defesa comum.
Uma terceira hipótese, mais imperial, é aquilo que já está previsto no próprio Tratado de Lisboa, permitindo aplicá-lo aos que seguirem em frente, e deixando a Irlanda (e quem mais quiser) dentro dos compromissos actuais, mas sem poderem participar nas decisões tomadas ao abrigo de Lisboa. Cria-se uma estrutura autónoma dentro da união, a que se dá a designação sui generis de Cooperação reforçada. Existem precedentes na união, algo semelhantes, como a convenção de Schengen, para a livre circulação de pessoas, que foi iniciada em 1985 por 5 estados membros e hoje conta já com 22, ou como os 11 estados que aderiram à União Económica e Monetária (zona euro) em 1999 que hoje são 15 e em breve mais. Em bom português, é o princípio do “amigo não empata amigo”.
Mas isto leva à Europa a duas, três, ou mais velocidades. Contrariamente ao propalado por muitos, o Tratado de Lisboa seria a melhor forma de balizar os directórios. Se chatearem muito (e estão a fazê-lo), as potências principais da união irão impor dois pesos e duas medidas com a correspondente marginalização dos pequenos estados. Não se podem dar ao luxo, na instável cena internacional actual, de perder o peso político induzido pela união. A França, a Alemanha, o Reino Unido, a Itália, a Espanha e a Polónia, não vão parar por exemplo, com a instituição da Segurança e Defesa comum, por mais obstáculos que lhes entravem o caminho. É, para esses estados, uma questão de poder.
O que não lhes vem à cabeça, a estas elites iluminadas da Europa, é que, mais tarde ou mais cedo, pagam o preço de uma política arrogante, distante e incompreensível aos olhos dos cidadãos europeus. Ou se aceita que é nas pessoas que reside a soberania, sejam elas pretas, brancas ou ás pintas, ou não se aceita e está tudo dito. À medida que, por medo, os que eleitos, se vão esquecendo de consultar os eleitores, se vão fechando em salas para as grandes decisões políticas - e por mais que inventem co-decisões com parlamentos, insistindo em mascarar a democracia - também irão perdendo cada vez mais a credibilidade (e legitimidade) perante aqueles a quem precisam de vender as ideias. Por melhores que sejam, essas ideias.
O que não lhes vem nunca à cabeça, a esses iluminados que sabem tudo para o nosso próprio bem, é que chega a hora de sujeitar tudo ao juízo dos tais 490 milhões. Em Portugal, nunca se referendou a Europa, nada. Sei que, também os eleitores, não ligam peva ao que mexe com a vida deles e dos seus filhos. Não votam, vão para a praia, e se votam, dizem não sem saber a quê…mas culpam sempre o que estupidamente (só pode ser isso) elegeram.
O que havia a fazer agora, se houvesse homens honestos e com coragem, era assim… anulavam-se as ratificações já feitas ao Tratado de Lisboa (nunca pensei estar tão de acordo com o Miguel Portas). Depois, durante o tempo que fosse preciso, um João Perry, uma Rosa Lobato Faria, eu sei lá... ia lendo aquilo pela TV à hora do jantar, "prime time", em todos os 27 estados da "união". A um artigo por dia, creio que 365 chegam. Não tenho a certeza, por causa da porrada de protocolos anexos, mas se aquilo encaixa em semestres universitários, há-de haver maneira... Ah! e antes de cada filme, nos cinemas... o "artiguito da semana" para aperitivo... além de manter o tratado on-line, onde há que tempos, cada um já o pode ir lá ler.
No fim, combina-se um referendo em todos os 27 no mesmo dia; quem quiser adere e submete-se, quem quiser sai. Deixa-se em aberto a possibilidade de adesão posterior aos que saem... e pronto!
Vai criar problemas e dores, pois vai. Contudo, faço notar que toda a transferência de soberania que já foi feita para a União carece de legitimidade democrática (há matérias, como as de Maastricht, que não legitimavam um parlamento a fazê-lo). Faço notar também, por outro lado, que um país como a Noruega, sem estar na União Europeia, participa nos comités e com ela conjuga a sua politica; não está, mas está... sub-repticiamente lá está. Claro, fica sempre a ver, não participa nas decisões. Mas não será ainda o fim do mundo, há muito pior nesta vida, veja-se o Zimbabwe... e, por obséquio, que se acabe com esta hipocrisia mútua de políticos manipuladores, e de eleitores irresponsáveis.
Que tal deixarmo-nos de tretas, sermos honestos?
Sou um pouco céptico relativamente ao Tratado, que aliás não entendo em toda a sua dimensão, provavelmente com a maioria esmagadora da população, e como não tolero arrogâncias nem aceito imposições de burocratas, fiquei impávido perante a negativa dos Irlandeses.
Se houvesse referendo em Portugal, com o actual quadro de referências, também votaria não, se a situação se modificasse o meu sentido de voto poderia mudar.
Boa semana
Um abraço
Sim, acho que esta seria a forma realmente honesta e desejável.
Mas irrealista, temo, os governos europeus, em especial as potências maiores nunca sujeitarão os seus interesses próprios (então de pois do trabalhão de negócios já arrumados!) a um bando de gentes directamente eleitas, sabe-se lá como, que para mais, quase nem liga às importantes eminências da Europa. È perigoso… sabe-se lá para onde poderiamos derivar… e depois, a União Europeia não se pode dar a esses luxos éticos, como "ser honesto", tem é que ser “original”... um Objecto Politico Não Identificado (OPNI)
;)
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