12.4.05
Pessoa e os heterónimos...
O chapéu do poeta Fernando Pessoa,1979, óleo s/tela de Costa Pinheiro
Lisboa. 26 de Novembro de 1935
No quarto passa a noite debruçado à secretária.
Confundimo-lo com os livros, papéis, também lápis minúsculos que só ele consegue manusear.
O cinzeiro cheio de pontas de cigarro.
Escreve, compulsivamente, ao jovem amigo Casais Monteiro:
"…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.)"
A carta vai a todo o vapor quando Pessoa começa a receber visitas inesperadas.
Caeiro, Reis, Campos e Soares.
Chegam um a um.
É madrugada e já estão todos reunidos.
São surpreendidos por um Pessoa emocionado, papéis em punho.
Terá recebido más notícias? perguntam, preocupados.
O poeta tenta desconversar.
É confuso, perde-se nas palavras, coisa que nunca acontecera antes.
Mas também nunca recebera visitas em tão adiantada hora.
É obra do "Grande Arquitecto do Universo", pensa.
Então que se cumpra o destino... Aos solavancos:
- Adiei a verdade quanto pude. É chegada a hora de deixar cair a máscara.
Os quatro ansiosos.
Quem está sentado levanta-se, quem está de pé senta-se ou passeia pelo quarto.
Pessoa e o seu discurso enviesado, interrompido por dores e gemidos:
- Numa carta confidenciava a um amigo tudo o que agora sinto que devo dizer-vos.
Um gole de coragem e solta:
- Vocês não existem.
Consternação na assistência.
- É isso, vocês não são mais que personagens da minha criação. Morro e levo-os comigo.
- Só pode ser delírio. Desatino. (diz Álvaro de Campos, ofendido).
- Vou-lhes contar como tudo aconteceu. "Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso.
E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir.
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.
Abri com um título, O Guardador de Rebanhos.
E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos.
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nesta altura já o via.
E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo.
Num acto, e à máquina de escrever, sem interrupção, nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem."
- Então, todo este tempo não passámos de uma mentira? (pergunta Ricardo Reis).
Bernardo Soares responde:
O poeta é um fingidor
Mente tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
- Pois esta é a chave, explica Pessoa.
- Não aceito. Morra em paz o meu criador, porque eu cá continuarei vivinho, poetando como sempre (desafia Álvaro de Campos).
- Arre! Que a criação agora vira-se contra o próprio criador.
Deveria ter suspeitado (lamenta-se Pessoa).
E quanto a si, Caeiro?
- Gosto de tudo que seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente, porque tudo é real e tudo está certo.
Álvaro de Campos:- Não entendo a sua complacência.
Não está a ver, Caeiro, que Pessoa usou-nos e, principalmente, usou-o.
Compelido a vencer o seu subjectivismo lírico decadentista, venceu-o de forma tão súbita e agressiva que não teve remédio senão dar um nome a esse crítico.
É ai que você surge, para salvá-lo.
Caeiro não esconde seu desgosto.
Pessoa então revela:
- Escrevi, com sobressalto e repugnância, o poema oitavo do Guardador de Rebanhos, com a sua blasfémia infantil e antiespiritualista.
A cada personalidade que consegui viver dentro de mim, dei uma índole expressiva, e fiz desta personalidade um autor, com livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais eu, autor real, nada tenho, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que eu próprio criei.
- Você não tinha esse direito (insiste Campos).
Ainda Pessoa:
- Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth.
Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.
Parece escusado explicar uma cousa de si tão simples e intuitivamente compreensível.
Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.
Ricardo Reis, que assistira mudo à revelação, pergunta:
- Mas por que é que você nos inventou? Qual a origem de tudo?
Pessoa, pacientemente, tenta explicar-lhe:
- É o fundo traço de histeria que existe em mim.
Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico.
Seja como for, a vossa origem mental está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.
Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema do Álvaro de Campos (o mais histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança.
Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…
A resposta não convence, não agrada.
Longe está o tempo em que fora loquaz.
Agora fazem-lhe ouvidos moucos.
Pessoa é todo angústia.
O silêncio que o rodeia.
A incompreensão, mágoa e até o desprezo dos seus outros "eu".
Vira-se para um último apelo.
Fica só com a sua verdade.
Descobri este texto delicioso, escrito por Mirna Queiroz recorrendo a originais do poeta.
O Fernando morreu pouco depois, a 30 de Novembro de 1935, no Hospital de S. Luís dos Franceses.