27.6.07
Ser moderno 2
"Destruir uma cidade, um estado, até um império, é um acto essencialmente finito; mas tentar a aniquilação total – o extermínio – de uma entidade tão ubíqua, mas teórica e ideologicamente tão definida como uma classe social ou uma abstracção racial, é outra coisa bem diferente, e impossível até de conceber para uma mente não condicionada pelos hábitos de pensamento ocidentais.
Aí está uma ambição verdadeiramente fáustica – transformar pela acção física não simplesmente a Terra, mas a qualidade das criaturas que a habitam, uma ambição aparentada com as pesquisas actuais para a destruição de montanhas, com a fuga aos limites da Terra, com o controlo e modificação genética e a manipulação da própria vida – todas elas ambições que, antes deste século, eram o tema tenebroso do mito e da necromancia.
No entanto, foram essas ambições manifestadas pelos dois movimentos políticos, o comunismo e o fascismo, que abalaram os anos que marcaram o meio do nosso século"
(Edmund Stillman e William Pfaff, The politics of hysteria: the sources of twenthieth century conflit, London: Victor Gollancz, 1964, p. 29)
Os campos da morte da Alemanha nazi, da Rússia soviética e da China maoista mataram muitos milhões de pessoas, mais do que em qualquer século anterior.
Contudo, não é o número de mortos que é particularmente moderno.
Moderna é a crença de que, em resultado dessas mortes, um mundo novo nasceria.
Em tempos passados, a Inquisição torturou e matou, mas nunca imaginou reconstruir o mundo através do terror.
Prometeu a salvação, mas num outro mundo, não no mundo terreno.
No século XX, pelo contrário, o morticínio em escala industrial praticado pelos estados contra os seus próprios cidadãos, foi realizado na crença de que os sobreviventes viveriam num mundo melhor do que qualquer outro que já tivesse existido.
A ideia de uma civilização universal, que o Ocidente defende, é um produto do cristianismo casado com o iluminismo.
Segundo John Gray, o misto de anarquia e teocracia que caracteriza a Al-Qaeda é um também subproduto do pensamento radical do Ocidente, e não do “choque de civilizações”.
Discordo de Gray, creio que o conflito entre a Al-Qaeda e o Ocidente, é ambas as coisas, por um lado uma reacção identitária e nesse sentido um choque de culturas, e em simultâneo é uma reacção imbuída de modernidade, desde a organização, passando pelos métodos até às finalidades quase niilistas do Islão radical.
De facto, e aqui já concordo com Gray, as grandes experiências de terror revolucionário - a destruição para salvar o mundo - nunca foram ataques contra o Ocidente, mas expressão de ambições alimentadas por esse mesmo Ocidente.
Como que por magia, quando duas culturas entram em contacto, dá-se uma certa fusão, e mesmo a reacção defensiva da cultura mais frágil, está já contaminada pela mais forte. A Al-Qaeda é um fenómeno moderno.
(lendo John Gray, Al-Qaeda e o significado de ser moderno, Relógio D’Água 2004)