Da Matéria 3: Bergson
Volto um instante à “percepção pura” imaginada por Bergson em Matéria e Memória, para fazer sentir o quanto a sua problemática da relação entre matéria e espírito é leibniziana no seu fundo.
É certo que a hipótese de trabalho de Bergson é muito diferente, é pragmática, se assim o quisermos: o corpo vivo é um agente de transformação das coisas, qualquer percepção conduz a uma acção.
Mas o que não é pragmático é que a percepção seja aplicada por Bergson a qualquer ponto material: “quanto mais imediata for a reacção, mais será necessário que a percepção se pareça com um simples contacto e o processo completo de percepção-reacção distingue-se apenas quando da impulsão mecânica seguida de um movimento necessário” (Matéria e Memória).
À medida que se sobe na escala dos seres organizados, observamos que a reacção imediata é atrasada, “impedida” e que essa inibição explica a indeterminação, o imprevisível, a liberdade crescente das acções.
Bergson vê o motivo para a existência desta inibição na extensão e na complexidade dos dispositivos nervosos que se interpõem entre as fibras aferentes (ou sensitivas) e as fibras eferentes (ou motrizes).
O “espelho” complexifica-se, o influxo produzido pode ser filtrado por muitas vias. Passará apenas por uma via e esta será a acção real. Mas muitas outras acções eram possíveis e ficarão inscritas no seu estado virtual.
É assim que a percepção deixa de ser “pura” ou seja instantânea e que a consciência representativa pode nascer dessa reflexão (no sentido óptico) desse “eco”, do influxo sobre o conjunto das outras vias possíveis e ignoradas actualmente, que formam a memória; trata-se apenas de memória imediata, ou hábito; a lembrança será a memória dessa memória.
É assim que, o que se dá um por um, como diz Bergson, “abalo após abalo” no ponto material amnésico, é identificado, condensado, como numa só vibração de alta-frequência, na percepção auxiliada pela memória.
A diferença pertinente entre o espírito e a matéria é o ritmo.
Num “instante” de percepção consciente que é na realidade um bloco indivisível de duração feito de vibração, “a memória condensa uma multiplicidade enorme de abalos que aparecem todos juntos, apesar de sucessivos” (Matéria e Memória, p. 73)
Para encontrar a matéria a partir de uma consciência bastar-nos-ia “dividir de modo ideal esta espessura individida de tempo e dsitinguir nela a multiplicidade desejada dos momentos” (ibid.)
Podemos exemplificar com uma dessas “qualidades segundas” abandonadas pela explicação mecanicista, por exemplo a cor vermelha.
A Ciência vê neste exemplo uma autêntica matéria, reconhece na luz vermelha uma vibração de campo magnético cuja frequência é de 400 triliões de vibrações por segundo.
O olho humano precisa de dois milésimos de segundo para dissociar duas informações no tempo.
Se tivesse que dissociar as vibrações condensadas na percepção do vermelho, seriam necessários vinte e cinco mil anos.
Mas ao sincronizar-se com esse ritmo, deixaria de perceber a cor vermelha, registaria apenas “abalos Puros” diz Bergson.
O indivíduo passaria a ser cada um dos abalos, instante após instante; seria um ponto material “puro” ou “nu”.
Jean François Lyotard, O Inumano, considerações sobre o tempo, Estampa 1990