14.10.06
Da Matéria 2: Monadologia
Spaceflightnow
As transformações nucleares como as que afectam certos elementos materiais ditos radioactivos ou que ocorrem nesses crisóis de transmutações que são as estrelas ou como as que provocamos com os bombardeamentos e a fissão do núcleo de plutónio ou de urânio 235, essas transformações não só exigiram a longa história das pesquisas físicas, de Descartes a Heisenberg, mas pressupõem um transtorno completo da imagem da matéria.
É com esta imagem invertida, por mais confusa que seja para um espírito tão mal formado quanto o meu, que se mede inevitavelmente, de perto ou de longe, o pensamento contemporâneo.
Um eixo essencial desta inversão da imagem da Matéria consiste na proeminência do Tempo, na análise da relação entre o corpo e o espírito.
Escreve Bergson: “As questões relativas ao sujeito e ao objecto, a sua distinção e união, devem ser postas em função do Tempo e não do Espaço” (Matéria e Memória, § 4).
O autor de “Energia Espiritual” recorda a frase de Leibnitz: “Podemos considerar qualquer corpo como um espírito instantâneo se bem que privado de memória” (Carta a Arnaud, Nov. 1671)
O instante que marca o acto espiritual em de Descartes, o tempo intemporal do entendimento, oscila assim para o lado da actualidade material. A mónade (substancia simples indivisível e activa que é elemento essencial de todos os seres do Universo segundo a filosofia de Leibniz) completamente nua é esquecida de um instante para o outro.
O verdadeiro espírito é memória e reminiscência, tempo contínuo, e no entanto, esta memória permanece local, limitada a um “ponto de vista”.
Apenas Deus tem ou é a Memória do Todo e o seu programa respectivo. Apenas Ele dispõe de todas as noções das mónades, de todas as propriedades que desenvolvem, desenvolveram e irão desenvolver.
Memória absoluta que é, ao mesmo tempo, um acto intemporal.
A localização das mónades criadas é a versão espacial da sua temporalidade. Têm um “ponto de vista” imanente ao Espaço porque são imanentes ao Tempo, porque não têm memória suficiente, não recolhem o suficiente.
Ao considerá-la espacialmente, qualquer mónade é um ponto material que se encontra em interacção (directa na proposição de Bergson; mediatizada pela sabedoria divina na opinião de Leibniz) com todos os outros pontos materiais.
Eis porque Bergson pode dar o nome de “imagem” a esse ponto material (Matéria e Memória) e Leibniz o dota de uma “percepção”.
Poderíamos dizer que o Mundo inteiro se reflecte em cada ponto material, mas o que dele estiver mais afastado e o que levar mais tempo para se tornar distinto (da mesma forma que calculamos distancias em tempo, nos passeios de montanha ou nas expedições interestelares), só poderá inscrever-se no “espelho” se o ponto material tiver a capacidade de reunir e conservar muitas informações de uma só vez. Se assim não for o registro pode ocorrer mas continua desconhecido.
É portanto necessário imaginar que entre matéria e espírito existe apenas uma diferença de grau que consiste na capacidade de recolher e conservar.
O espírito é matéria que se lembra das suas interacções, da sua imanência.
Mas o desdobramento é contínuo entre o espírito instantâneo das coisas e a matéria muito recolhida dos espíritos.
Se existir tal continuidade entre os estados da matéria, significa que todas as unidades materiais, mesmo as mais “nuas”, como é dito na “Monadologia”, só podem consistir na sua forma, tal como Aristóteles entendera. Isto porque a matéria considerada como “massa” se divide infinitamente e porque a unidade que pode produzir é apenas fenomenal.
Acontece o mesmo com cada corpo humano, o qual não pára de mudar de massa e só tem unidade real e exacta devido à sua diferença, ao seu “ponto de vista”, ele próprio determinado pela sua “forma”, ou seja: a sua capacidade para recolher as acções que se exercem sobre ele (a que chamamos interacções).
Se existem “átomos de substância” eles são, portanto, “pontos metafísicos”, são algo vital e uma espécie de percepção.
Imagino pois este átomo como o ponto onde se projectam todas as imagens que a mónade tem do Universo.
Nenhuma possui o Universo por inteiro no seu espelho (Monadologia, § 56); de outro modo não a poderíamos distinguir de outra mónade. Ora, um ser é um ser.
Na matéria, não é a “massa” que obedece ao princípio dos indiscerníveis (pelo contrário, ela é a multidão), mas é a forma que é a projecção num ponto matemático de uma textura de relações.
E, se as imagens mudam no espelho de cada átomo formal, é necessário que todos os outros espelhos reflictam, cada um segundo o seu ponto de vista, as mudanças complementares do primeiro.
Esta harmonia é assegurada pela sabedoria divina, a única que representa tudo, enquanto que a diferenciação dos “pontos de vista”, a multiplicação das mónades que representam a diversidade do Mundo e a complexidade dos corpos, resultam do princípio segundo o qual a potência total deve desdobrar todas as suas possibilidades.
A nossa Ciência laica dá o nome de Energia à potencia dita total e atribui a responsabilidade da concordância entre os pontos da Matéria, à sua compossibilidade, não a uma sabedoria, mas sim ao acaso e à selecção que fixam (para “durações de vida” muito desiguais), organizações materiais, “átomos formais” que são, de qualquer forma, precários.
Jean François Lyotard, O Inumano, considerações sobre o Tempo, Estampa 1990