13.10.06
Cosmopolitismo 2: a herança helenística e a Res Publica Christiana
JNavarro
No mundo romano, a presença de uma doutrina cosmopolita está ligada à crise da cultura política republicana e aos vínculos com o mundo helenístico.
O intermediário entre a doutrina estóica e Roma foi o filósofo Panécio.
Trata-se de uma filosofia moral concreta, que insere elementos universais e comuns a todos os homens, na vida real da sociedade. Nesse sentido, o Cosmopolitismo de Panécio podia harmonizar-se com a realidade politica de Roma e com a sua hegemonia.
Também Cícero tentou opor à crise que ameaçava a Republica, os ideais da Humanitas, e da Concórdia Ordinum, baseados nas Leis. É também Cícero que atribui a Sócrates o estereótipo cínico já visto em Diógenes de Laertes, fazendo-o definir-se como “Cidadão do Mundo”, o que não é correcto, porque deforma o pensamento do “primeiro filósofo”, que apesar de anunciar uma moral universalista, se manteve fiel às leis da Polis, tanto que não recusou a morte.
A Pax Augusta permitiu também momentaneamente um papel importante aos intelectuais na ideologia romana. Séneca baseou-se nos ideais cosmopolitas, para escrever “De Clementia” um verdadeiro programa, visando renovar o principado à luz de valores de Filantropia, ensinados pela filosofia estóica: era o sentimento de amor que deveria ligar o príncipe aos súbditos, sem distinção na qualidade de homens.
O uso do poder de Nero deve ter demonstrado bem depressa a profunda fragilidade da tentativa.
Mas não foi a última, porquanto na época dos Antoninos parece ter-se realizado a velha aspiração platónica do poder supremo entregue a um filósofo (Marco Aurélio).
O último eco importante das aspirações cosmopolitas dos estóicos está ligado aos juristas que prepararam a Constitutio Antoniniana de 212, que acabava definitivamente com a distinção entre os cidadãos romanos e os outros, afirmando a igualdade de todos os homens perante a Lei.
Depois da divisão do Império e das invasões bárbaras, o tema de uma comunidade supra nacional inspirou-se preferencialmente em ideais religiosos, no universalismo de uma Res Publica Christiana, onde os homens seriam iguais porque todos filhos de Deus.
O Cristianismo teve de escolher desde o início, entre limitar-se a ser uma heresia local ou dirigir-se ao Mundo, superando os limites hebraicos.
O conflito entre Pedro, e o fariseu helenizante Paulo, ao terminar com a vitória deste ultimo, derivou na opção universalista.
Foi esta opção que inspirou depois todo o relacionamento político do Cristianismo, que passou da indiferença ou total oposição, até ao reconhecimento de dois poderes, surgidos na luta secular entre o Papado e o Império. Nesse conflito, ao afirmarem a dimensão universal dos próprios poderes, ambos os contendores reconheciam implicitamente o mesmo carácter ao antagonista.
Mas para um Cristianismo triunfante, capaz de se assumir como uma força organizadora e hegemónica, tornada elemento de unificação, é preferível falarmos de Universalismo e não propriamente de Cosmopolitismo.
Tinha-se entretanto, obscurecido a consciência do direito individual a uma escolha; ficavam assim cada vez mais distantes e nebulosos os ideais cosmopolitas da Antiguidade.
Giuseppe Ricuperati in Dicionário de Política/ Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Universidade de Brasília, 12ª ed. 2004