24.3.06
O Discurso da Serpente
Porque te recusas ó Eva, a provar do pomo que te ofereço?
Decerto a existência te corre feliz e doce, num calmo, fresco fluir como do regato que te embala no sono;
Não há fera nos bosques nem ave no céu que secretamente não inveje a tua marcha de cadência e firmeza, o teu repouso de harmonia e elegância;
...
Eu próprio te admiro ò Eva, e confesso que me seria impossível ter-te criado mais bela e nobre do que és;
Mas ante a obra, sei o que há de mal talhado;
Sou o génio que critica e melhora, que vai tornando cada dia mais certos os caminhos do Sol e marcando às ondas do mar um mais rítmico encher;
Sou o que vem junto a ti para te revelar a ti mesma.
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Não afastes pois, o meio que te pode conduzir à liberdade plena;
Começa hoje mesmo, pela simbólica maçã a assimilar o Mundo, vai-o observando instante a instante, encontrando nele as semelhanças divinas com a Luz que te resplandece no peito;
Que nada hoje por fim, fora de ti, senão como sonho que poderás sonhar quando quiseres, como um jogo que elevas ou derrubas à vontade;
Aprisiona o teu Senhor e o conselheiro que em mim te surge na fina tarde com a lei que tiveres inventado e sê tu livre;
Subjuga depois a própria Lei, concebe-a como figura do sonho ou como pedra do jogo;
E então ó Eva, te alargarás a todos os espaços, e batidos os deuses serás Deus!
Agostinho da Silva, Considerações e outros textos, Assírio&Alvim 1988